Num conhecido poema seu, Drummond afirma, lembrando suas aulas em criança, que "o português são dois: o outro, mistério". Ele se refere, no caso, à diferença entre o português falado e a norma-padrão escrita, aprendida na escola. O fato é que o português do Brasil é mesmo um tanto esquizofrênico, porque a sua forma padronizada está vinculada ao português de Portugal, enquanto sua forma falada, e mesmo as normas cultas modernas, são completamente independentes do que se fala do outro lado do Atlântico. Disso resulta que a língua que se fala e se aprende em casa e nas ruas é tão radicalmente diferente da que se aprende na escola e nas gramáticas, que o falante brasileiro vive sob aquele velho estigma de que não sabe falar português, ou que fala tudo errado e que português é muito difícil etc. (O português é, para falar a verdade, uma língua gramaticalmente mais complicada que, por exemplo, o inglês; basta ver a quantidade de flexões possíveis de uma palavra — os verbos principalmente — no português e compará-la com a de flexões das palavras do inglês. Por outro lado, o inglês apresenta maior dificuldade no que diz respeito ao léxico, ou seja, a quantidade de palavras do inglês é bem maior que no português, o que representa um problema grave para quem aprende aquela língua, sobretudo suas variedades mais formais. Outra dificuldade no inglês é a diferença entre a grafia das palavras e sua pronúncia; mas nisso a língua francesa é muito pior, o que, levando-se em conta a complexidade de sua morfossintaxe, a torna certamente mais difícil que o português e que o inglês. Fecha parêntesis.)
O que torna o português uma língua tão cheia de armadilhas é, antes de tudo, a noção errada de que a língua certa está lá no Velho Mundo e o que falamos aqui é uma corruptela, uma versão mal-adaptada, tosca e ignorante da bela língua de Camões. Nada disso é verdade. Primeiro que, em Portugal, hoje, não se fala mais a mesma língua de Camões; ou melhor, é a mesma, mas mudou. Mudou porque, mesmo na época de Camões, aliás mais ainda nela, não se falava apenas uma modalidade de língua em Portugal, ou seja, a língua apresentava variação. Ora uma variante prevalecia, ora outra, até que se fixou mais ou menos um padrão, que foi sendo lentamente modificado, apesar do conservadorismo linguístico dos nossos irmãos portugas. Foi sendo modificado porque lá, em Portugal, havia contatos e variantes linguísticas específicas, bem como transformações socioeconômicas as quais não havia por aqui, nem à época da Colônia, nem depois. Donde se deduz naturalmente que as mutações pelas quais a língua passou aqui foram diferentes das mudanças pelas quais ela passou lá.
Para não me estender muito, porque não é essa a intenção, digamos que o que foi dito basta como introdução ao assunto de que queremos tratar. Voltando ao ponto inicial, o fato é que a norma-padrão que adotamos hoje como “língua oficial do Brasil” é uma variedade linguística imprópria ao País, a qual não corresponde ao que quase duzentos milhões de pessoas aprendem e usam todos os dias. A maioria dos gramáticos e professores de português usa esse fato como um instrumento de poder, como se eles fossem donos de uma verdade inacessível à massa ignara, o que cria uma relação de dependência que afeta a autoestima da maior parte dos brasileiros e lhes tira a muitos deles o acesso à plena cidadania, dado que quem não fala certo não pode ocupar certas posições sociais etc etc. O que fazer então? Acabar com a norma-padrão e decretar que cada um fala e escreve como der na telha? Não seria boa ideia. Uma padronização linguística é necessária por motivos óbvios, com benefício para o mercado editorial, a imprensa, a correspondência oficial etc, e por motivos mais sutis, como a preservação mesma da unidade linguística nacional e, consequentemente, da sua unidade social, territorial, política.
Então que fazer? Parece-me que as respostas mais adequadas são aquelas que se propõem a estudar e sistematizar a língua usada no Brasil. Em outras palavras, se trataria de concluir que a forma padrão no Brasil é “se trataria” e não “tratar-se-ia”, por exemplo; ou seja, desvincular a norma-padrão brasileira da portuguesa. Não se trata de mudar o nome da língua para brasileiro; mas, sim, de entender, estudar e ensinar o português que se fala no Brasil, independentemente do que estiver ocorrendo em Portugal. Mais ou menos assim: em vez de a gramática (aliás excelente) do Bechara se chamar Moderna gramática portuguesa, poderia se chamar “Moderna gramática brasileira”, ou “Moderna gramática do português brasileiro”. Ou a do Celso Cunha, olha que bonito: “Novíssima gramática do português brasileiro contemporâneo”. Em vez de me ensinarem na escola que o certo é “Dá-me um café”, como se fala (sim, se fala, desde os primeiros anos de vida de uma criança) em Portugal, me ensinariam a dizer (e escrever), corretamente, “Me dá/dê um café”. Por favor.
Isso se justifica? Será que as diferenças entre o português do Brasil e o europeu não se resumiriam simplesmente à pronúncia e ao vocabulário, motivo aliás tão grande de piadas entre os dois povos? Quando lê, por exemplo, um texto formal escrito em Portugal, o brasileiro não entende perfeitamente? Sim, claro, desde que ele tenha estudado, porque o que ele aprendeu na escola, na mesma aula que o Drummond, foi o português de Portugal. Nós somos especialistas em português padrão de Portugal. (Digo o padrão porque, caso lêssemos um texto informal português, estranharíamos deveras, porque não foi isso que aprendemos na escola; mas isso é assunto para depois; enquanto isso, experimente ler, num blogue português, a caixa de comentários, que normalmente é mais informal que as postagens.)
Mas, como conhecemos muito a língua de Portugal e estudamos pouco a do Brasil, não percebemos as diferenças tão importantes que há entre as duas. Diferenças estruturais, sintáticas, não apenas de pronúncia e de vocabulário. Verificar e compreender algumas dessas diferenças será a tarefa deste blogue e de seus dois ou três leitores nas duas ou três próximas postagens.
Até breve.