Que critérios se devem adotar para julgar se um livro é bom ou ruim? Tentamos responder a essa pergunta no texto abaixo.Um livro é um grande livro não pela história que conta, mas por elementos que vão muito além do que uma leitura desatenta possa revelar. Não é porque se lê um livro num só fôlego, sem se conseguir largar, que ele é um grande livro. Na verdade, os livros que mais me marcaram foram aqueles que passei meses lendo, ainda que curtos. Não é porque o livro é fácil de ler, ou porque o leitor se identifica com o personagem, que ele é bom. Quando aprecio um livro, buscando responder à pergunta “É bom?”, costumo levar em conta as seguintes características:
Linguagem:
Este é, certamente, o elemento mais importante a ser observado num texto literário. A elaboração formal, a coerência entre a linguagem e o estilo (ressalte-se que linguagem e estilo não são a mesma coisa), a concisão necessária ou a construção intencionalmente perifrástica, prolixa; enfim, esse é o elemento básico da construção de um bom livro. Por isso muitos livros perdem completamente o interesse quando (mal) traduzidos. O contrário também é válido.
Referências:
Não que um bom livro tenha de se encher de citações. Ao contrário, elas costumam deixar o texto pedante. Mas é sempre um índice de criatividade formal a menção, tácita ou evidente, a outra obra ou autor. Para o meu gosto, quanto mais discreta for a referência, melhor; mas essa é uma idiossincrasia. O fato é que uma construção propositalmente ambígua, que estabeleça intertextualidade, ou o recurso à paráfrase e à paródia enriquecem o texto. É desnecessário dizer — mas o digo — que o efeito causado depende da sensibilidade do escritor e, evidentemente, da bagagem de leitura do leitor.
Ponto de vista:
Toda história é contada a partir de um ponto de vista. Mesmo que o narrador seja de terceira pessoa e onisciente. Ele adota um ponto de vista. Se isso não estiver claro, o texto é ruim. Simples assim. Esse ponto de vista pode ser o de um personagem do texto, ou de vários, mas pode ser algo mais, digamos, distanciado. Mas não impessoal. O narrador pode ter um ponto de vista irônico, lamurioso, heroico (como nas epopeias). E esse ponto de vista, é desnecessário dizer (mas digo, mas digo), precisa de coerência. Esse é o aspecto em que muitos livros se enfraquecem. Subitamente, o narrador solta um comentário, ou um adjetivo, enfim, que faz o leitor se perguntar: quem teria dito isso? Ponto negativo para o livro.
Verossimilhança:
Corresponder a história à realidade estrita não é exatamente uma obrigação do ficcionista. Mas é necessária uma coerência interna. A história deve ser crível dentro do próprio universo que ela cria. Excetuam-se, evidentemente, os possíveis jogos a que autores podem recorrer, criando situações notoriamente incoerentes. Contudo, mesmo aí, deve haver uma intenção, normalmente de comismo. Se o autor, a sério ou sem o perceber, cria situações ou personagens que não correspondem aos parâmetros da realidade ou às características ficcionais do próprio enredo, o livro perde em qualidade. Aqui, aliás, escorrega a maioria dos best-sellers da atualidade. Histórias mirabolantes, encontros inesperados e personagens traiçoeiros são ingredientes que, quando bem-empregados, rendem interesse à obra. Quando bem. E, portanto, raramente.
Há outros critérios, mais sutis, como a consideração do contexto histórico de produção do livro. Mas quero dedicar-me a rebater alguns que, definitivamente, não garantem valor a uma obra. Por exemplo, a tal originalidade. Ora, se se tomar essa palavra em sentido estrito, a última vez que se pôde falar em originalidade em Arte foi na, sei lá, Grécia Antiga? O fato é que não há muito o que escrever que não tenha sido escrito já. Nada, na verdade. Outra ideia boba é que um livro é bom se o enredo é intrigante. Disso já falamos no início. Qual é a história do livro? Esta é uma pergunta inútil. Temas banais fazem grandes obras. Depende de outros critérios. Outro elemento que pode servir de valoração é o engajamento. Ora, uma obra defender uma determinada pregação, explicitamente, pode ter efeito positivo no âmbito da sua repercussão, e até no significado histórico desse trabalho. Mas raramente um texto com a intenção primeira de transformar o mundo resulta num grande livro.
Para não ficarmos só na teoria, podemos enumerar alguns exemplos do que foi dito. Machado de Assis escreveu uma das obras capitais da literatura brasileira, aclamada mundialmente, a partir do tema da traição. Nada mais manjado, certo? Errado, porque o trunfo do nosso escritor não foi o tema, mas um conjunto de opções formais que fizeram de Dom Casmurro o que ele é. Primeiramente, a linguagem. A prosa machadiana flui, é agradável, encanta apenas pela própria beleza das imagens, das palavras, dos contrastes entre termos muito próximos, que geram efeitos estéticos que, numa leitura de fruição, muitas vezes nem decodificamos, mas são captados. Outro ingrediente marcante é o ponto de vista adotado. A história de Bentinho ganha interesse adicional porque é contada sob seu próprio ponto de vista, mas não o do mesmo Bentinho personagem, pois D. Casmurro já está velho quando narra a história. Essa escolha, evidentemente, afeta muito o enredo. O leitor é conduzido, na trama, por um narrador velho, desmemoriado e tendencioso. Quem fica perdendo tempo discutindo se Capitu o traiu ou não, na verdade, não percebeu o jogo proposto pelo escritor. Como vamos acreditar no que D. Casmurro nos diz, se o objetivo dele ao escrever a obra é justamente buscar, numa memória fraca e arrependida, motivos para justificar sua desconfiança e suas atitudes contra Capitu? Uma historinha de amor e ciúme: mas um grande livro.
Outro autor de que gosto muito é o português José Saramago. Muita gente o critica pelo conteúdo às vezes ingenuamente idealista de seus textos. Críticas bobas ao capitalismo etc. Mas, veja-se, Saramago não me parece preocupado em apregoar o socialismo em seus textos, e sim em escrever frases belíssimas e construir personagens extremamente interessantes. O que ele faz, aliás, como poucos escritores. No texto de Saramago, encontramos uma mistura frequente — e muito gostosa — da linguagem informal, dos ditados populares, das expressões familiares, com uma sintaxe complexa, rica e bem-amarrada. Ou uma mistura de personagens simples e cotidianos com emoções profundas e difíceis de compreender, porquanto extremamente humanas. Tome-se, como exemplo, o romance Memorial do convento, que muita gente não consegue ler até a décima página, outros acham o melhor livro do mundo. Eu estou mais perto do segundo grupo. É um grande livro, principalmente se analisado do ponto de vista da beleza da linguagem. Memorial do convento me parece um grande poema, uma ópera, uma epopeia. As frases, as imagens, os diálogos, toda a estruturação linguística do texto é de um grau de elaboração formidável. Por isso é um livro difícil de ler, posto que belo. Vencida a barreira do estranhamento da linguagem, lê-se ele com os olhos úmidos. Além do primor formal, Saramago nos apresenta personagens com densa caracterização psicológica, além de descrições espaciais que, ainda que longas — às vezes muito longas —, são tão ricas e nítidas, que transportam o leitor para o meio da Península Ibérica medieval.
Há autores que se destacam pela maneira como rompem drasticamente a estrutura padrão de um texto. Dependendo do grau de intencionalidade dessas rupturas, podemos ter um grande livro. Quando penso em um autor que, de modo magistral, tenha feito essa inovação formal, o primeiro nome que me lembra é o de Jorge Luis Borges. Criatividade temática e formal, aliada a um incomparável domínio da língua e seus recursos, eis os trunfos desse autor. Em Borges, na verdade, encontramos uma tal quantidade de recursos, que se torna impossível (ou desinteressante) falar dele sem ler um texto concreto. Mais adiante, se interessar, podemos ler e analisar um dos contos dele por aqui.
Dados os exemplos, fica a dica: a leitura de um livro não é mera distração; pressupõe análise, avaliação, critérios razoavelmente bem-definidos. Se não, continuaremos comprando como best-sellers uma quantidade enorme de livros que não passam de ficção.