31 de março de 2010
Pergunte-me como
Ok, o que não falta na internet é site pra tirar dúvida de português. Por incrível que pareça, alguns são até bons, como o Ciberdúvidas. Mesmo assim, aqui vai minha contribuição. Pergunte o que quiser.
30 de março de 2010
Crase
Eu sei, seu sei. Mais de um ano sem postar nada é quase um recorde mundial. Mas para de reclamar e aprende aí: crase é o nome que se dá à fusão da preposição "a" com um outro "a", que pode ser duas coisas: 1) artigo definido feminino; 2) pronome demonstrativo feminino. O primeiro caso todo mundo conhece. O segundo é um pouco mais difícil de... Não, não é difícil, o pessoal é que não explica direito. É assim: numa frase como "Esta frase ficou mais bonita que a anterior", o "a" destacado, que parece um artigo sozinho, é o pronome demonstrativo. As análises dos gramáticos divergem, mas eu prefiro entender que, neste caso, não se trata da omissão do substantivo "frase", ficando o artigo ali, sozinho, sem pai nem mãe; e, sim, da substituição da palavra "frase" pelo pronome "a". Então, se coincidir uma preposição e esse pronome, faz crase. Por exemplo:
1) A história do Brasil está intimamente ligada à das grandes navegações europeias.
O adjetivo "ligada" pede preposição, a história está ligada a alguma coisa. Mas preposição sozinha não faz crase, esse aliás é um erro comum de quem não sabe usar o acento grave. Vê uma preposição, e já taca uma crase. Então repito: preposição sozinha não faz crase. Mas é necessária para que ela ocorra. Então, voltemos ao exemplo: existe preposição, e ela se une com o pronome demonstrativo "a" que substitui a palavra "história". Crase.
Este caso da crase com pronome demonstrativo pode acontecer antes de quase todo tipo de palavra, diferentemente da crase com artigo, que só acontece antes de substantivo feminino. Olha só:
2) Nossa história está ligada à que nossos avós contam. (pronome)3) Nossa história está ligada à de vocês. (preposição)4) Nossa história está ligada à portuguesa. (adjetivo)5) Nossa história está ligada à contada nos livros. (verbo)6) Nossa história está ligada à sua. (pronome possessivo)
Quanto a esse último exemplo, vale destacar que a crase é obrigatória mesmo antes do pronome possessivo, caso em que muita gramática ensina que é opcional. Porque o que é opcional antes do pronome possessivo é o artigo, e não a crase. Portanto, se for crase de preposição com pronome, ela é obrigatória.
Então não existe "à" se não for um desses dois casos. Muita gente sai craseando qualquer "a" que vê na frente. É só raciocinar um pouquinho, nem dá tanto trabalho assim. Tem um truque: se a crase é a fusão da preposição com a palavra feminina "a" (seja artigo seja pronome), então como fica se a palavra for masculina? Fica "ao", sempre, tanto no caso do artigo quanto no caso do pronome.
Assim: se a palavra "história", dos nossos exemplos, for trocada por uma masculina (não precisa manter o sentido), o "à" vira "ao". Se não virar, é porque não tinha crase.
7) Nosso passado está ligado ao das grandes navegações.8) Nosso passado está ligado ao seu. (Veja que o "ao" é obrigatório, assim como a crase seria se a palavra fosse feminina.)
Voltando agora ao primeiro caso, o da preposição com artigo definido feminino, o melhor jeito de não errar é lembrar sempre que ela só ocorre se houver artigo. As dúvidas de crase têm mais a ver com o artigo do que com a preposição. Preposição quase todo mundo sabe quando é que tem, quando é que não tem. Artigo é que gera dúvida. Por exemplo, outro dia um arquiteto (aliás meu pai) ficou em dúvida com a seguinte frase:
9) Os afastamentos obrigatórios são áreas destinadas a passagem eventual de encanamento ou fiação de interesse público blablablá.
Tem crase ou não tem? Bom, que tem preposição, isso não é dúvida. Alguma coisa é destinada a. Mas tem artigo antes de "passagem"? Aqui, especificamente, tanto faz. Depende do sentido que se quer enfatizar: se se quer dar um sentido mais genérico à palavra "passagem" (qualquer passagem, em qualquer tempo, etc), é melhor sem artigo, e portanto sem crase; se a ênfase é para uma passagem já mais ou menos prevista, esperada, pode ter artigo, e daí crase. Tanto faz, no fim das contas.
Noutros casos, o artigo é obrigatório, porque é preciso definir o substantivo:
10) A tubulação destinada à fiação antiga do prédio será substituída etc.
Trata-se de uma fiação específica, o artigo é obrigatório, a crase também.
O mesmo vale para indicação de hora ou dia:
11) O evento vai de 10h a 11h.12) O evento vai das 10h às 11h.
No exemplo 11, não há artigo no primeiro termo, não deve haver no segundo, por paralelismo. É só a preposição. No outro, há artigo nos dois. Crase, portanto.
O pessoal se atrapalha também com o "há". Aqui é fácil: para indicação de tempo passado, "há", sempre. Para outras indicações (distância, hora, tempo futuro), preposição "a", com ou sem crase dependendo de haver ou não artigo ou pronome demonstrativo depois, vê aí.
13) Eles saíram há pouco tempo, há dois dias, há uma semana. Eles estão aqui há três dias.14) Vamos sair daqui a pouco, daqui a duas semanas, às três horas. Estamos a três quilômetros do centro, estamos a cinco minutos da estação.
Decora, vai. E não existe, no português, em caso nenhum, "á".
Tem um posto de gasolina aqui perto de casa com uma placa assim:
Horário de funcionamento:Segunda à sexta: 8h as 22h.Sábados: 9h às 23h.Domingos e feriados: 12h ás 19h.
Quer dizer, o cara apostou que uma delas ia estar certa, ou que qualquer coisa dava no mesmo. Corrige aí nos comentários, vai.
Outra dúvida com a crase é antes dos topônimos, os nomes dos lugares. Vou à Veneza ou vou a Veneza? Tudo depende, de novo, do artigo. Preposição eu sei que tem, quem vai vai a etc. Mas e o artigo? Sugiro testar com o verbo "visitar".
15) Visitei Veneza (sem artigo). Portanto, vou a Veneza.16) Visitei a Itália (com artigo). Vou à Itália.
Funciona sempre. É fácil. Larga de ser preguiçoso e para de errar crase, que ninguém aguenta mais. Outro dia vi um anúncio de "pizzas àpartir de 9,90". Se a pizza for no mesmo capricho com que o cara usa a crase, melhor pagar mais caro noutro lugar.
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