30 de março de 2010

Crase

Eu sei, seu sei. Mais de um ano sem postar nada é quase um recorde mundial. Mas para de reclamar e aprende aí: crase é o nome que se dá à fusão da preposição "a" com um outro "a", que pode ser duas coisas: 1) artigo definido feminino; 2) pronome demonstrativo feminino. O primeiro caso todo mundo conhece. O segundo é um pouco mais difícil de... Não, não é difícil, o pessoal é que não explica direito. É assim: numa frase como "Esta frase ficou mais bonita que a anterior", o "a" destacado, que parece um artigo sozinho, é o pronome demonstrativo. As análises dos gramáticos divergem, mas eu prefiro entender que, neste caso, não se trata da omissão do substantivo "frase", ficando o artigo ali, sozinho, sem pai nem mãe; e, sim, da substituição da palavra "frase" pelo pronome "a". Então, se coincidir uma preposição e esse pronome, faz crase. Por exemplo:
1) A história do Brasil está intimamente ligada à das grandes navegações europeias.
O adjetivo "ligada" pede preposição, a história está ligada a alguma coisa. Mas preposição sozinha não faz crase, esse aliás é um erro comum de quem não sabe usar o acento grave. Vê uma preposição, e já taca uma crase. Então repito: preposição sozinha não faz crase. Mas é necessária para que ela ocorra. Então, voltemos ao exemplo: existe preposição, e ela se une com o pronome demonstrativo "a" que substitui a palavra "história". Crase.
Este caso da crase com pronome demonstrativo pode acontecer antes de quase todo tipo de palavra, diferentemente da crase com artigo, que só acontece antes de substantivo feminino. Olha só:
2) Nossa história está ligada à que nossos avós contam. (pronome)
3) Nossa história está ligada à de vocês. (preposição)
4) Nossa história está ligada à portuguesa. (adjetivo)
5) Nossa história está ligada à contada nos livros. (verbo)
6) Nossa história está ligada à sua. (pronome possessivo)
Quanto a esse último exemplo, vale destacar que a crase é obrigatória mesmo antes do pronome possessivo, caso em que muita gramática ensina que é opcional. Porque o que é opcional antes do pronome possessivo é o artigo, e não a crase. Portanto, se for crase de preposição com pronome, ela é obrigatória.

Então não existe "à" se não for um desses dois casos. Muita gente sai craseando qualquer "a" que vê na frente. É só raciocinar um pouquinho, nem dá tanto trabalho assim. Tem um truque: se a crase é a fusão da preposição com a palavra feminina "a" (seja artigo seja pronome), então como fica se a palavra for masculina? Fica "ao", sempre, tanto no caso do artigo quanto no caso do pronome.
Assim: se a palavra "história", dos nossos exemplos, for trocada por uma masculina (não precisa manter o sentido), o "à" vira "ao". Se não virar, é porque não tinha crase.
7) Nosso passado está ligado ao das grandes navegações.
8) Nosso passado está ligado ao seu. (Veja que o "ao" é obrigatório, assim como a crase seria se a palavra fosse feminina.)
Voltando agora ao primeiro caso, o da preposição com artigo definido feminino, o melhor jeito de não errar é lembrar sempre que ela só ocorre se houver artigo. As dúvidas de crase têm mais a ver com o artigo do que com a preposição. Preposição quase todo mundo sabe quando é que tem, quando é que não tem. Artigo é que gera dúvida. Por exemplo, outro dia um arquiteto (aliás meu pai) ficou em dúvida com a seguinte frase:
9) Os afastamentos obrigatórios são áreas destinadas a passagem eventual de encanamento ou fiação de interesse público blablablá.
Tem crase ou não tem? Bom, que tem preposição, isso não é dúvida. Alguma coisa é destinada a. Mas tem artigo antes de "passagem"? Aqui, especificamente, tanto faz. Depende do sentido que se quer enfatizar: se se quer dar um sentido mais genérico à palavra "passagem" (qualquer passagem, em qualquer tempo, etc), é melhor sem artigo, e portanto sem crase; se a ênfase é para uma passagem já mais ou menos prevista, esperada, pode ter artigo, e daí crase. Tanto faz, no fim das contas.
Noutros casos, o artigo é obrigatório, porque é preciso definir o substantivo:
10) A tubulação destinada à fiação antiga do prédio será substituída etc.
Trata-se de uma fiação específica, o artigo é obrigatório, a crase também.
O mesmo vale para indicação de hora ou dia:
11) O evento vai de 10h a 11h.
12) O evento vai das 10h às 11h. 
No exemplo 11, não há artigo no primeiro termo, não deve haver no segundo, por paralelismo. É só a preposição. No outro, há artigo nos dois. Crase, portanto.

O pessoal se atrapalha também com o "há". Aqui é fácil: para indicação de tempo passado, "há", sempre. Para outras indicações (distância, hora, tempo futuro), preposição "a", com ou sem crase dependendo de haver ou não artigo ou pronome demonstrativo depois, vê aí.
13) Eles saíram há pouco tempo, há dois dias, há uma semana. Eles estão aqui há três dias.
14) Vamos sair daqui a pouco, daqui a duas semanas, às três horas. Estamos a três quilômetros do centro, estamos a cinco minutos da estação.
Decora, vai. E não existe, no português, em caso nenhum, "á".
Tem um posto de gasolina aqui perto de casa com uma placa assim:
Horário de funcionamento:
Segunda à sexta: 8h as 22h.
Sábados: 9h às 23h.
Domingos e feriados: 12h ás 19h.
Quer dizer, o cara apostou que uma delas ia estar certa, ou que qualquer coisa dava no mesmo. Corrige aí nos comentários, vai.

Outra dúvida com a crase é antes dos topônimos, os nomes dos lugares. Vou à Veneza ou vou a Veneza? Tudo depende, de novo, do artigo. Preposição eu sei que tem, quem vai vai a etc. Mas e o artigo? Sugiro testar com o verbo "visitar".
15) Visitei Veneza (sem artigo). Portanto, vou a Veneza.
16) Visitei a Itália (com artigo). Vou à Itália.
Funciona sempre. É fácil. Larga de ser preguiçoso e para de errar crase, que ninguém aguenta mais. Outro dia vi um anúncio de "pizzas àpartir de 9,90". Se a pizza for no mesmo capricho com que o cara usa a crase, melhor pagar mais caro noutro lugar.

17 comentários:

Sylvio de Alencar. disse...

Dez!!!!!!!!!!!!

Sylvio de Alencar. disse...

A po*ra da crase não foi totalmente eliminada da ortografia brasileira???????
Me perdi....

Como vc demora (demora?) pra postar, vou atrás do meu lucro...

Anônimo disse...

Não tenho formação em letras, mas me interesso por gramática e observei na seguinte postagem: http://aletramata.blogspot.com/2007/08/outro-dia-um-aluno-meu-aps-ter-me-visto.html em que você apontou, com propriedade, algumas correções equivocadas que costumam fazer. Gostaria de apontar para uma outra correção, que tb costumam fazer, que a meu ver tb está equivocada.
Com relação à frase “Ela pediu para mim fazer os deveres” já observei em várias apostilas de gramática a seguinte correção: “Ela pediu para eu fazer os deveres”, justificando que o pronome “eu” deve conjugar o verbo. No entanto, observando melhor a frase, não percebo que o verbo no infinitivo deva ser conjugado, uma vez o infinitivo “fazer” é núcleo do objeto direto “fazer os deveres”. E, considerando que na frase não há, em princípio, uma ideia implícita de permissão: “Ela pediu (permissão) para eu fazer os deveres”, a única coisa que eu observo é que a substituição da preposição “a” por “para” (coisa comum na linguagem cotidiana), causa uma impressão de finalidade, a qual não existe, uma vez que a regência em questão é: VTDI. No entanto, não só apostilas de gramática, como a grande maioria das pessoas que teve acesso a certo nível de escolaridade, julgam ser incorreto o emprego do “mim” na frase em questão. Se fosse dita com emprego mais formal da preposição “Ela pediu a mim fazer (ou “que fizesse”, na forma modal) os deveres”, a maioria dessas pessoas não acharia incorreta a frase, que de fato está correta, e não é tão diferente da outra. A conclusão que eu chego é de que, considerando essa construção em específico, o humilde ainda fala mais correto que o culto — embora sem o saber — e ainda por este é corrigido. Coisa semelhante parece acontecer com relação à frase: “Ela disse para (a) mim fazer isso” ou “que fizesse isso”.

Se possível, peço-lhe responder auqi na postagem mesmo....

Anônimo disse...

"Porque o que é opcional antes do pronome possessivo é o artigo, e não a crase"

Mas se o artigo é opcional, a crese acaba sendo opcional também, já que se refere à fusão.

Anônimo disse...

A única situação em que seria obrigatória é quando o possessivo tem valor substantivo, que é o exemplo que vc apresenta.

Luis disse...

Os pronomes possessivos são sempre de valor adjetivo. Quem tem valor substantivo aí é o pronome "a", demonstrativo.
Quando eu digo que o opcional é o artigo, e não a crase, quero tentar desfazer uma confusão que as gramáticas fazem em geral, e que traz muitos problemas pra quem tenta entender o uso da crase.

Anônimo disse...

A meu ver faz, sim, sentido pensar demonstrativo na função anafórica e o segundo possessivo (sua) também como adjetivo de um substantivo retomado pela função anafórica, formando uma estrutura que tende a ser elíptica, já que a função anafórica dispensaria a repetição do substantivo depois do segundo pronome possessivo...No entanto, observe o seguinte link...de um gramático que tem coluna até em jornal:

http://dilsoncatarino.blogspot.com/search/label/crase%20e%20pronomes%20possessivos

Para ele nem se trata de um demosntrativo...

Anônimo disse...

Se fosse uma frase como: "O meu carro é igual ao seu." "A minha biblioteca é igual à sua" Imagino que até poderia pensar que antes do segundo possessivo tenha artigo, por uma questão de paralelismo, já que no primeiro tb tinha. Mas nestes últimos exemplos, fico, então, em dúvida.

Luis disse...

O Bechara acha também que o "a", neste caso, não é pronome, e sim artigo, com o substantivo subentendido. Ainda assim, o possessivo tem valor adjetivo. Sempre. Se ele fosse um substantivo, o artigo seria opcional, como o é diante de substantivos normais, claro que com variação de sentido.
Eu prefiro entender o "a" como pronome, justamente pela obrigatoriedade de sua presença na frase.
Agora fui olhar o tal do Catarino, e olha isso aqui: http://www.gramaticaonline.com.br/texto/899/Sujeito_determinado_/_indeterminado. Ele diz que o sujeito pode ser uma oração reduzida de infinitivo, gerúndio ou particípio. Uma beleza. As orações substantivas em geral só se reduzem para infinitivo, em especial a subjetiva.
E olha essa aqui também: http://www.gramaticaonline.com.br/texto/904/A_palavra_se . Na parte em que ele fala do "se" como conjunção integrante, o segundo exemplo está errado, pois nele o "se" é conjunção condicional. A não ser que eu entenda algo como "sentir" no sentido de "perceber", "notar", que não dá uma frase muito normal...
Eu gastei 10 minutos fazendo isso. Poderia passar a noite inteira apontando bobagens na página desse cara. Peraí, achei outra: http://www.gramaticaonline.com.br/texto/903/Coloca%C3%A7%C3%A3o_pronominal_nas_locu%C3%A7%C3%B5es_verbais. Ele diz que, numa frase como "Eles têm se esforçado", eu tenho ênclise no verbo auxiliar, com hífen opcional. Ele nem menciona a possibilidade da próclise no verbo principal, posição aliás preferencial no português do Brasil, exceto para os pronomes "o" e "a".

E aquele monte de elogios na caixa de comentários? Devem ser todos dele mesmo, né?

Anônimo disse...

De todo modo, mesmo que eu considerar nos últimos exemplos (apenas nestes) que o que vem antes do segundo posessivo seja a fusão de um artigo com uma preposição, o substantivo também está "recuperado" na frase...e do mesmo modo os dois possessivos seriam pronomes que adjetivam um substantivo comum..."carro" "biblioteca"

Anônimo disse...

Não estou o defendendo-o, acho-o até meio babaca...Só estou apresentando um contraponto...já que ele tem bastante influência para quem procura pesquisar sobre gramática na internet. (acho q vou tomar vergonha na cara e comprar uma boa gramática)
Mas n sei, vc diz que se se considerar o possessivo como substantivo, o artigo seria opcional? Mas neste caso o pensaria então como qaulquer palavra substantiva que pede um artigo... Mas eu concordo que o valor seja adjetivo, só não sou dogmático ao achar que sempre será..vai que um dia, ao acaso se ache um exemplo em que isso se contradiga..mas em geral, sim, penso tb que é adjetivo...N verdade eu vi que vc tem uma visão mais complexa (detalhada) dessa estrutura. Para mim, antes de ler esse artigo, era mais "prático" pensar o possessivo, nesta estrutura em q a crase é obrigatória, como um substativo qualquer que pede seu artigo.

Anônimo disse...

se bem que, em geral,pronome substantivo n pede artigo né...nunca tinha pensado nisso, rs...bem..já aluguei muito o blog, vou tentar pegar no sono

Anônimo disse...

só uma curiosidade, o Bechara diz ser artigo somente neste exemplo em que o artigo tb aparece no primeiro possessivo? ou nos dois:
"O meu carro é igual ao seu"
"Meu carro é igual ao seu"
Nos dois seria artigo para ele?

Anônimo disse...

AH, agora li melhor oq vc disse anterormente. Sim, os substantivos ,em geral, podem ou não pedir artigo...Mas no contexto da crase ssempre pedem...E não falo "Vou a bar"..e Sim: "Vou ao bar" como falo: Vou à praia. Neste caso, mesmo que equivocadamente, ao pensar o possessivo como substantivo, a crase teria obrigatoriedade...

Anônimo disse...

Rapaz, eu tive uma ideia mais simples para se interpretar o porquê da obrigatoriedade da crase antes de um pronome possessivo em que o substantivo está subentendido. Acho válida a sua ideia de pensar na fusão entre um pronome demonstrativo e a preposição, a fim de justificar a obrigatoriedade de seu uso neste caso. Só que não sei até que ponto isso não seria trocar seis por meia dúzia, pois, embora seja coerente esse raciocínio, não vejo que a interpretação como uma frase “A minha blusa é igual à sua” seja necessariamente a de que a fusão é resultado de um pronome demonstrativo com a preposição, pois alguém poderia entendê-la de modo diverso... Por isso acho que há uma maneira mais simples de se abordar o assunto... Se eu for pensar o “a” como um artigo, no exemplo acima, poderia então pensar que falta algum motivo para se legitimar a obrigatoriedade da crase, pois o artigo, como se sabe, é opcional. Mas por que será que a regra estabelece que só é opcional quando o bendito substantivo aparece? Ora, porque o substantivo está bem ali para mostrar que está sendo adjetivado pelo pronome possessivo que pode ou não receber o artigo... Então se se quiser utilizar ou não o artigo antes do possessivo numa frase como: “Refiro-me à sua ideia / Refiro-me a sua ideia” parece não cheirar e nem feder (tanto que é opcional), pois o substantivo “ideia” está ali para mostrar sua cara. Já na frase anterior: “A minha blusa é igual à sua”, o substantivo blusa aparece só uma vez...Conclusão: neste caso a crase parece ser um marcador obrigatório da elipse do substantivo, a fim de que se possa recuperá-lo no contexto. Afinal, o substantivo é o mesmo, mas as blusas são duas...Se bem que quanto a este último argumento parece, então, coerente também pensar o “a” como um pronome demonstrativo. Mas também me parece coerente pensar, neste caso, a crase como um marcador inevitável da elipse do substantivo, uma vez que isso também justifica a função adjetiva do pronome possessivo. Bem, fica a minha “formulação” como uma possibilidade de entendimento... Vou ver se fico mais algum tempo sem futricar essa internet. Valeu!

Anônimo disse...

O pronome possessivo será sempre adjetivo em qualquer situação? mesmo se for, por exemplo, um predicativo do sujeito? Exemplo: Esse livro é meu/ Esse livro é o meu... Ou então um objeto: Pegue o seu ônibus que eu pegarei o meu. O segundo (meu ônibus) tb é adjetivo mesmo q a palavra ônibus não apareça? Ou o entendimento é o de que estaria adjetivando o pronome demonstrativo neste caso?
Qdo vc diz que sempre será adjetivo o pron. possessivo, tal argumento se sustenta na premissa de que a função de posse seria sempre adjetiva?

Luis disse...

Sim, o possessivo é adjetivo porque ele é um determinante de substantivos. Ele não pode conjugar verbo, ele não ocorre como núcleo de objeto direto etc. Quando eu tenho "Esse livro é meu", ele é tão adjetivo quanto a palavra "belo" em, por exemplo, "Este livro é belo".
Quando se diz "Este livro é o meu", há duas análises possíveis. Uma é de que "o meu" é pronome demonstrativo "o" + possessivo (adjetivo). Outra análise possível é a de que eu tenho o substantivo subentendido (não gosto desse tipo de análise, geralmente). Outra é a de que o artigo "o" está substantivando o pronome "meu", como o faria em, por exemplo, "Dos dois carros, gosto mais do azul", em que o adjetivo "azul" teria sido substantivado pelo artigo. Esta última análise me parece coerente também, mas eu prefiro a primeira (demonstrativo + possessivo).
Veja-se que, em nenhuma das análises, o possessivo foi considerado um substantivo propriamente, ainda que eu possa entender que ele foi substantivado pelo artigo, o que pode acontecer com qualquer adjetivo.
Aliás, como quase qualquer palavra, o pronome possessivo pode ter sentido absoluto e ser usado à maneira de substantivo, como em "Cuide do seu, não deseje o alheio", considerando-se que eu não esteja fazendo referência a nenhum objeto específico.
[]s!