Outro dia um aluno meu, após ter me visto provar que estão certas algumas construções sintáticas um tanto estranhas, embora possíveis, desabafou: “Nunca mais corrijo ninguém!” Tem razão meu aluno. Corrigir é tarefa de professor e deve limitar-se à sala de aula. Há inúmeras bobagens ditas por aí em nome do “bom português”. E inúmeros preconceitos contra aqueles que, da ótica de uma classe dominante opressora, não sabem falar direito. Neste ponto, a ignorância e o preconceito de classe se misturam e se confundem. Há os que conhecem a norma-padrão da língua e usam isso como instrumento de poder e de discriminação contra pessoas que, por diversos motivos, falam ou escrevem fora da norma de prestígio. Outros há que, por desconhecer as nuances da língua, julgam erradas frases que a norma-padrão aceitaria com tranquilidade. Mas a maioria das pessoas (com algum estudo) sintetizam o que há de ruim nos dois grupos anteriores: discriminam e corrigem os outros, mesmo sem conhecer bem a norma oficial do português.
Por exemplo, no que eu acabei de dizer: a maioria das pessoas discriminam é uma frase que um monte de gente julga estar errada e corrige: “a maioria discrimina”, apontam os incautos, sem se dar o trabalho de ir consultar uma gramática. Outra frase que, por conter uma inversão, pode parecer errada é, por exemplo, “É difícil para mim falar sobre isso”. Mim não está conjugando o verbo. (Aliás, ressalte-se, quando se corrige uma frase como “isso é para mim fazer” sob o argumento de que mim não conjuga verbo, demonstra-se desconhecimento — grave — de que o verbo fazer é infinitivo e, portanto, não conjugado. Mesmo o eu, que a norma-padrão exige neste caso, não conjuga infinitivo.) Voltando ao caso, então, o que há aqui é apenas uma inversão que, por ser curta, pode não se separar por vírgula. Mudando a colocação, poderia ficar “Para mim, sobre isso é difícil falar”, “Para mim, falar sobre isso é difícil” ou “Falar sobre isso é, para mim, difícil”. Etc.
Tem uma comunidade no orkut chamada “Eu procuro erros de português”. Eles corrigem, rindo, frases do tipo “Fui ver os meninos brincar” para Fui ver os meninos brincarem. Ora, não se lembram de Cartola (ou Marisa Monte) cantando “Ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar”. Cartola sabia o que estava fazendo. E sabia que tinha a opção de não flexionar o infinitivo neste caso. Assim como tinha a de flexionar. O pessoal da comunidade no orkut não sabe disso. Não estudou a lição numa boa gramática. Mas, mesmo assim, fica apontando erro na fala dos outros.
Na verdade, ser corrigido em público é sempre constrangedor. Interromper uma conversa para fazer alguma correção de linguagem na fala do outro é, no mínimo, uma indelicadeza. A língua serve antes de tudo para comunicar, e errado mesmo é não saber entrar em contato com o outro. E isso inclui ouvir, respeitar e compreender o seu interlocutor, bem como se fazer entender por ele. Na mesma língua.
Voltando à sala de aula, meu aluno talvez não tenha percebido a importância da decisão que estava tomando. Deixar de corrigir os outros é sinal de polidez e de humildade. Não só porque quem corrige pode estar errado, mas porque a conversa fica muito mais agradável e produtiva. Corrigir é tarefa (ingrata) para professor. Da qual ele não deve se isentar. Em sala de aula deve-se corrigir o que o aluno escreve em provas. Deve-se comentar fatos que surjam na fala de alguém. Deve-se apresentar problemas comuns em textos do dia a dia. Deve-se discutir casos complexos, como a estrutura da presente frase (que eu já discuti aqui). Deve-se mostrar usos literários, raros na linguagem falada. Porque o aluno está lá para isso mesmo. Para ampliar seu repertório sintático e lexical. Para ampliar os limites do seu pensamento e da sua capacidade de interpretação. Mas não para ser humilhado pelo professor, nem para aprender a humilhar os outros.
Corrigir é fundamental. Ensinar é fundamental. Esse é o papel da escola, do professor e da educação.
* Só para constar: o corretor gramatical do Word me mandou corrigir várias das frases deste post. Tsc, tsc.