11 de março de 2008

Objetos

Não vou dar nenhuma desculpa esfarrapada. Deixei o blogue às moscas pelos últimos vinte meses por pura preguiça mesmo de o atualizar. Mas sempre é tempo de se redimir. Tínhamos ficado de analisar uma outra importante diferença entre o português do Brasil e o de Portugal, que é o uso dos complementos verbais, ou objetos.
É assim: no Brasil, diz-se com toda a tranquilidade uma frase como "Meu carro quebrou, mas ainda não levei para a revisão". Veja-se que tanto quebrar como levar são verbos transitivos, ou seja, ocorrem com complemento verbal. No entanto, na nossa frase os verbos não estão acompanhados de complemento, e mesmo assim ninguém fica se perguntando: "Quebrou o quê? Levou o quê?" Em Portugal, se diria: "Meu carro quebrou-se, mas ainda não o levei para a revisão". (Tá bom, tá bom, eu sei que em Portugal não se fala carro, e sim auto; agora deixa eu continuar a explicação.) Quer dizer: lá é menos comum, mesmo na língua falada, o apagamento do objeto. Aqui, porém, o mais natural é uma frase dessas ocorrer sem a repetição do objeto. Seria estranha, para nós, uma frase assim: "Comprei um livro, nem o li ainda e já o emprestei." Mais frequente seria a elipse pura e simples do objeto nos dois últimos verbos. Já os portugueses estranham esse apagamento, e usam o pronome oblíquo para marcar a anáfora.
Inversamente, em Portugal é comum o apagamento do sujeito. Sobretudo quando pronominal, é regra não explicitar o termo que conjuga o verbo, isto é, o sujeito: "José Saramago é um dos mais importantes escritores de língua portuguesa. Tem diversos romances e também escreve contos." Veja-se que o sujeito dos dois últimos verbos não foi explicitado. No Brasil, sobretudo no nível da fala, seria naturalíssimo dizer Ele tem diversos romances e ele também escreve contos. Na primeira pessoa, por exemplo, um brasileiro diz eu fui, depois eu voltei, daí eu encontrei não sei quem e por aí vai; enquanto um português acharia melhor apagar todos os eus dessa frase.
Ou seja: no Brasil é natural apagar o objeto, mas não o sujeito, quando subentendidos; em Portugal, o normal é apagar o sujeito, quando subentendido, mas não o objeto. Isso não é uma regra, e varia bastante dependendo do uso, do estilo e sobretudo do grau de formalidade. Mas é uma diferença estrutural importante entre as duas línguas, e deve ser destacada quando se fala disso em sala de aula.
Essas diferenças (há outras também) servem para orientar os professores, linguistas e gramáticos brasileiros a prosseguir nos estudos que embasem o estabelecimento de uma norma-padrão brasileira, independente e diferenciada da norma-padrão portuguesa. Isso não é nenhuma forma de ingratidão à nossa língua-mãe ou blablablá. É o passo decisivo para tornar o ensino de português mais coerente com a nossa realidade, com o nosso jeito, com os nossos usos e com a nossa inteligência, que funciona de modo diferente da inteligência (aliás finíssima) dos portugueses.

5 comentários:

Marïana disse...

Tavares!
ou que inesperado e agradável seu comentário no listinhas!
Pensei que você havia morrido pra vida blogueira!
como estão as coisas,nenhum projeto literário?!
bom,atualizado todo santo domingo,passa por lá ;]

beijo ;*

Unknown disse...

Olá! Descobri seu site hoje. Como sou professora e estou estudando com os alunos a variação linguística, gostaria de poder colocá-los em contato com você através do seu blog. Será possível?

Luis disse...

Mariana,

vida de blogueiro não é fácil. Mas vou tentar atualizar mais isso aqui.
Aparecerei sempre. Beijos


Lika:
fique à vontade para trabalhar o blogue com seus alunos. Estou inclusive à disposição para discutir assuntos que lhes interessem.
Abraços!

Hérculest Corrêa disse...

Luís, que delícia o seu blogue. Também sou fessô de Português aqui em Belzonte e quero trocar figurinhas com você. Tenho inscursões na lingüistica e nos estudos literários, como você. Também arrisquei a escrever uns microcontos, que devem ser lidos no powerpoint. Gostaria de enviar alguns para você. Abração lingüístico-literário, Herculest Corrêa

Luis disse...

Herculest,
mande os microcontos.
Belzonte é a melhor cidade do mundo! Quem sabe a gente toma uma cerveja e conversa sobre isso tudo na próxima vez que eu for a BH?!
grande abraço!