14 de dezembro de 2010

Uma vírgula!

O uso da vírgula causa discussões e dúvidas infinitas. Há muita margem para liberdade no uso desse sinal, mas há também critérios bem-definidos que precisam ser entendidos.
E a primeira coisa a entender é que a vírgula não é para marcar respiração. Nem corresponde necessariamente a uma pausa na fala. O que quer dizer que uma frase bem comprida pode não ter vírgula nenhuma, e nem por isso vamos perder o fôlego no meio dela.
Outra ideia errada é que a vírgula serve para desfazer ambiguidades. Não, não desfaz. Se a frase é ambígua por defeito de construção, vai continuar ambígua se você sair enfiando vírgulas onde bem entender. Aquelas brincadeiras de ficar mudando vírgula de lugar para mudar o sentido são um passatempo, não correspondem a dúvidas de pontuação no mundo real.
A vírgula, na verdade, é um marcador sintático, marca um intervalo sintático, é típica da escrita, portanto nem sempre encontra correspondência na fala. Os critérios para uso da vírgula dependem da estrutura da frase, e os principais deles são os seguintes:

1) Deslocamento de adjunto adverbial: usa-se a vírgula para marcar a mudança de posição do adjunto adverbial (aqueles termos que normalmente atribuem circunstâncias ou qualificações ao verbo, ou a toda a oração). A posição normal deles é o fim da frase, então, quando se antecipam, marcam-se com vírgula. O uso da pontuação é dispensável quando o adjunto adverbial já estiver claramente marcado e seu deslocamento não implicar dúvidas ao leitor sobre a estrutura da frase. Por exemplo, posso não pontuar quando o adjunto deslocado for curto, ou claramente adverbial (como os advérbios terminados em –mente). Se o adjunto adverbial deslocado for uma oração (oração subordinada adverbial, ou seja, tem verbo no meio), a vírgula ocorre sempre; aliás, com oração adverbial, é frequente a vírgula ocorrer mesmo sem inversão.
Observe-se que estamos falando de termos adverbiais, ou seja: não se usa vírgula para marcar inversão dos termos principais da oração, como sujeito, objeto direto e objeto indireto.

2) Intercalação de termo acessório (exceto se restritivo): usa-se vírgula para marcar o acréscimo de um termo acessório, em qualquer posição na frase, como apostos, vocativos, orações adjetivas, orações intercaladas, modificadores adverbiais relacionados genericamente a toda a oração (como Infelizmente, Segundo o ministro, Na minha opinião), expressões retificadoras (isto é, ou seja, a saber  etc) e predicativos de caráter acessório (como em O rapaz, desanimado, entrou em casa). Há uma exceção importantíssima a esta regra: os termos acessórios de caráter restritivo, especificador, não têm vírgula. Se, por exemplo, na última frase que eu citei, a palavra “desanimado” servisse para especificar de que rapaz estou falando, não haveria vírgula: O rapaz desanimado entrou em casa, isto é, o termo intercalado faz distinção entre este e outros possíveis rapazes de quem eu pudesse falar. Os termos restritivos (aposto restritivo, oração adjetiva restritiva, a maior parte dos adjuntos adnominais e complementos nominais) não têm vírgula.

3) Coordenação: a vírgula é usada em todas as coordenações (enumerações de termos ou orações) que não sejam marcadas por conjunção. Quando há conjunção, o uso varia bastante. Quando a coordenação é marcada pela conjunção e, por exemplo, normalmente não se usa vírgula (entre orações coordenadas é mais frequente que entre termos simples); com o ou, usa-se opcionalmente; com o mas, usa-se quase sempre (menos frequentemente quando ocorre entre termos simples). Com outros termos que parecem conjunção mas não são, como portanto, todavia, contudo, logo, então, marca-se sempre a coordenação com vírgula. Vale lembrar que a vírgula, quando aparece junto com a conjunção, vem sempre antes dela.

Nos casos 1 e 2, a vírgula faz um isolamento, ou seja, usa-se uma vírgula antes, outra depois do termo que se quer separar (a menos que ele venha no início ou no fim da frase, é claro). No caso 3, uma vírgula, só, marca a coordenação. (Estas minhas últimas vírgulas, por exemplo, são sintaticamente opcionais, mas, se eu as tirar, o leitor pode entender o “só” como uma restrição ao verbo “marca”, como se eu dissesse que a única coisa que a vírgula faz é marcar coordenação. Mas, como o que eu quero dizer é que a vírgula sozinha basta, pus o “só” entre vírgulas. Opcional, mas sem sair dos critérios.)

Vamos a alguns exemplos e suas respectivas justificativas:
a) Antes de acabar o jogo, o juiz abandonou o gramado. (regra 1: oração adverbial deslocada)

b) Compraremos, ainda hoje, os presentes de Natal. (Regra 1: adjunto adverbial deslocado; como é curto e composto por advérbios, posso tirar as vírgulas; observe-se que ou eu uso as duas, ou nenhuma; uma só, ficaria errado.)

c) O acidente, que envolveu um carro e uma moto, deixou três pessoas feridas. [Regra 2: oração adjetiva (acessória, portanto), de valor explicativo.]

d) Aquele, sim, era o homem da vida de Maria. (Regra 2: adjunto adverbial acrescentado livremente, sem vinculação com nenhum termo específico; nestes casos, ainda que curto, normalmente se usa a vírgula.)

e) Meu filho João passou de ano. (Regra 2: se não há vírgulas isolando “João”, é porque é uma restrição, ou seja, eu tenho mais de um filho e estou falando de apenas um deles; note-se o risco de comprometer o sentido se eu errar a pontuação nesta frase, como em, por mau exemplo: Eu e minha esposa Maria fomos ao parque.)

f) O menino gostava de estudar História, Geografia e Biologia. (Regra 3: os três termos estão coordenados, mas o “e” substitui a vírgula no último caso.)

g) Não tínhamos conseguido falar com o diretor, mas, quando ele saiu do prédio, os funcionários, irritados, o cercaram, e a confusão começou. (Esta é uma típica frase que causa confusão quanto ao uso da vírgula. Há várias, e precisamos analisar cada caso separadamente: a primeira marca coordenação de orações — regra 3; a segunda, casada com a terceira, marca o deslocamento de uma oração adverbial — regra 1; as duas seguintes isolam o “irritados” pela regra 2; e a última marca a coordenação de orações — como já há a conjunção “e”, a vírgula é opcional, mas bastante frequente por se tratar de orações com sujeitos diferentes.)

Há vários outros usos, convém ver uma boa gramática (recomendo para isso a do Bechara). Um deles, muito interessante, é o uso da vírgula para marcar a omissão do verbo, como em O primeiro projeto foi vetado e o segundo, aprovado.
Outras dúvidas são comuns. O uso da vírgula é muito afetado pelo estilo, pelo ritmo que se quer imprimir ao texto, pelo gosto do autor etc. Mas os critérios explanados acima devem ser seguidos, em todo texto formal, por obediência a um padrão que garante clareza, fluidez e elegância ao que se escreve.

Qualquer dia desses eu escrevo sobre outros sinais de pontuação, como o ponto e vírgula, os travessões e os parêntesis. Até lá!

19 de abril de 2010

Autor publicado!

Uma versão um pouco resumida deste meu texto aqui sobre os "porquês" saiu publicada no caderno Eu, concurseiro, do Correio Braziliense de hoje. O que não faz de mim, exatamente, um autor publicado, mas já é alguma coisa, né?

Tem versão online aqui. Não tem mais. Agora, só pra assinante.

31 de março de 2010

Pergunte-me como

Ok, o que não falta na internet é site pra tirar dúvida de português. Por incrível que pareça, alguns são até bons, como o Ciberdúvidas. Mesmo assim, aqui vai minha contribuição. Pergunte o que quiser.

30 de março de 2010

Crase

Eu sei, seu sei. Mais de um ano sem postar nada é quase um recorde mundial. Mas para de reclamar e aprende aí: crase é o nome que se dá à fusão da preposição "a" com um outro "a", que pode ser duas coisas: 1) artigo definido feminino; 2) pronome demonstrativo feminino. O primeiro caso todo mundo conhece. O segundo é um pouco mais difícil de... Não, não é difícil, o pessoal é que não explica direito. É assim: numa frase como "Esta frase ficou mais bonita que a anterior", o "a" destacado, que parece um artigo sozinho, é o pronome demonstrativo. As análises dos gramáticos divergem, mas eu prefiro entender que, neste caso, não se trata da omissão do substantivo "frase", ficando o artigo ali, sozinho, sem pai nem mãe; e, sim, da substituição da palavra "frase" pelo pronome "a". Então, se coincidir uma preposição e esse pronome, faz crase. Por exemplo:
1) A história do Brasil está intimamente ligada à das grandes navegações europeias.
O adjetivo "ligada" pede preposição, a história está ligada a alguma coisa. Mas preposição sozinha não faz crase, esse aliás é um erro comum de quem não sabe usar o acento grave. Vê uma preposição, e já taca uma crase. Então repito: preposição sozinha não faz crase. Mas é necessária para que ela ocorra. Então, voltemos ao exemplo: existe preposição, e ela se une com o pronome demonstrativo "a" que substitui a palavra "história". Crase.
Este caso da crase com pronome demonstrativo pode acontecer antes de quase todo tipo de palavra, diferentemente da crase com artigo, que só acontece antes de substantivo feminino. Olha só:
2) Nossa história está ligada à que nossos avós contam. (pronome)
3) Nossa história está ligada à de vocês. (preposição)
4) Nossa história está ligada à portuguesa. (adjetivo)
5) Nossa história está ligada à contada nos livros. (verbo)
6) Nossa história está ligada à sua. (pronome possessivo)
Quanto a esse último exemplo, vale destacar que a crase é obrigatória mesmo antes do pronome possessivo, caso em que muita gramática ensina que é opcional. Porque o que é opcional antes do pronome possessivo é o artigo, e não a crase. Portanto, se for crase de preposição com pronome, ela é obrigatória.

Então não existe "à" se não for um desses dois casos. Muita gente sai craseando qualquer "a" que vê na frente. É só raciocinar um pouquinho, nem dá tanto trabalho assim. Tem um truque: se a crase é a fusão da preposição com a palavra feminina "a" (seja artigo seja pronome), então como fica se a palavra for masculina? Fica "ao", sempre, tanto no caso do artigo quanto no caso do pronome.
Assim: se a palavra "história", dos nossos exemplos, for trocada por uma masculina (não precisa manter o sentido), o "à" vira "ao". Se não virar, é porque não tinha crase.
7) Nosso passado está ligado ao das grandes navegações.
8) Nosso passado está ligado ao seu. (Veja que o "ao" é obrigatório, assim como a crase seria se a palavra fosse feminina.)
Voltando agora ao primeiro caso, o da preposição com artigo definido feminino, o melhor jeito de não errar é lembrar sempre que ela só ocorre se houver artigo. As dúvidas de crase têm mais a ver com o artigo do que com a preposição. Preposição quase todo mundo sabe quando é que tem, quando é que não tem. Artigo é que gera dúvida. Por exemplo, outro dia um arquiteto (aliás meu pai) ficou em dúvida com a seguinte frase:
9) Os afastamentos obrigatórios são áreas destinadas a passagem eventual de encanamento ou fiação de interesse público blablablá.
Tem crase ou não tem? Bom, que tem preposição, isso não é dúvida. Alguma coisa é destinada a. Mas tem artigo antes de "passagem"? Aqui, especificamente, tanto faz. Depende do sentido que se quer enfatizar: se se quer dar um sentido mais genérico à palavra "passagem" (qualquer passagem, em qualquer tempo, etc), é melhor sem artigo, e portanto sem crase; se a ênfase é para uma passagem já mais ou menos prevista, esperada, pode ter artigo, e daí crase. Tanto faz, no fim das contas.
Noutros casos, o artigo é obrigatório, porque é preciso definir o substantivo:
10) A tubulação destinada à fiação antiga do prédio será substituída etc.
Trata-se de uma fiação específica, o artigo é obrigatório, a crase também.
O mesmo vale para indicação de hora ou dia:
11) O evento vai de 10h a 11h.
12) O evento vai das 10h às 11h. 
No exemplo 11, não há artigo no primeiro termo, não deve haver no segundo, por paralelismo. É só a preposição. No outro, há artigo nos dois. Crase, portanto.

O pessoal se atrapalha também com o "há". Aqui é fácil: para indicação de tempo passado, "há", sempre. Para outras indicações (distância, hora, tempo futuro), preposição "a", com ou sem crase dependendo de haver ou não artigo ou pronome demonstrativo depois, vê aí.
13) Eles saíram há pouco tempo, há dois dias, há uma semana. Eles estão aqui há três dias.
14) Vamos sair daqui a pouco, daqui a duas semanas, às três horas. Estamos a três quilômetros do centro, estamos a cinco minutos da estação.
Decora, vai. E não existe, no português, em caso nenhum, "á".
Tem um posto de gasolina aqui perto de casa com uma placa assim:
Horário de funcionamento:
Segunda à sexta: 8h as 22h.
Sábados: 9h às 23h.
Domingos e feriados: 12h ás 19h.
Quer dizer, o cara apostou que uma delas ia estar certa, ou que qualquer coisa dava no mesmo. Corrige aí nos comentários, vai.

Outra dúvida com a crase é antes dos topônimos, os nomes dos lugares. Vou à Veneza ou vou a Veneza? Tudo depende, de novo, do artigo. Preposição eu sei que tem, quem vai vai a etc. Mas e o artigo? Sugiro testar com o verbo "visitar".
15) Visitei Veneza (sem artigo). Portanto, vou a Veneza.
16) Visitei a Itália (com artigo). Vou à Itália.
Funciona sempre. É fácil. Larga de ser preguiçoso e para de errar crase, que ninguém aguenta mais. Outro dia vi um anúncio de "pizzas àpartir de 9,90". Se a pizza for no mesmo capricho com que o cara usa a crase, melhor pagar mais caro noutro lugar.